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A importância do sistema de bicicletas partilhadas em Lisboa

Lisboa tem em desenvolvimento há vários meses (ou serão já anos?) um concurso para a implementação de um sistema de bicicletas partilhadas na cidade, à semelhança de Barcelona, Paris, etc. O processo já tinha chegado ao ponto de selecção de apenas 1 concorrente, contudo, parece ter ficado em águas de bacalhau desde essa altura. Já ouvi falar em questões políticas – necessidade de fazer isto ser aprovado pela Assembleia da Câmara, onde a oposição poderia inviabilizar o projecto, e também em questões financeiras, porque o modelo escolhido ou proposto implicava a contribuição de alguns milhões de euros por parte da CML – cuja situação financeira tem andado nas lonas nos últimos anos. Aguardamos todos por notícias… Preferencialmente positivas, pois só seria aceitável matar o projecto por falta de dinheiro da CML se isso também servisse para deixar de subsidiar manutenção de estradas, táxis, etc, por exemplo. Se os outros modos de transporte, públicos e privados, são subsidiados, porque não as bicicletas públicas?…

Os sistemas de bicicletas partilhadas (a.k.a. bikesharing) fazem hoje parte da oferta básica de transportes públicos de qualquer capital que se preze. Actualmente vão na 3ª geração, e já têm uma história de 40 anos:

  • 1ª geração, 1964, Amsterdão. As bicicletas eram normais mas pintadas de branco, e postas à disposição de quem as quisesse usar, sem custos nem controlo de nenhuma tipo. Não resultou, desapareceram todas em pouco dias.
  • 2ª geração, 1995, Copenhaga. As bicicletas eram adaptadas a uso intensivo e bastante caracterizadas com publicidade. Podiam ser recolhidas e levantadas em vários pontos pela cidade, e funcionavam como os carrinhos de supermercado, depositando uma moeda. Contudo, ainda eram alvo de muitos roubos. O sistema de Aveiro, pioneiro em Portugal, era originalmente deste tipo.
  • 3ª geração, 1996, Portsmouth University (Inglaterra). Este sistema envolvia um cartão magnético que os alunos usariam para alugar uma bicicleta. Este e outros sistemas subsequentes – nomeadamente o 1º numa cidade, Rennes, em 1998, foram progressivamente melhorados com uma série de evoluções tecnológicas a nível da identificação dos utilizadores, pagamento, fixação das bicicletas, recolha e depósito das mesmas, etc.

A história destes sistemas avançou devagar até 2005, ano em que Lyon, a segunda maior cidade francesa, lançou o primeiro sistema de bicicletas partilhadas de 3ª geração de larga escala, Vélo’v, e tudo mudou a partir daí, principalmente depois de Paris ter implementado o seu mega-sistema, Vélib (ver vídeo aqui).

O impacto dos sistemas de bikesharing

Os sistemas de bicicletas partilhadas constituem uma mais-valia para o desenvolvimento de uma política para a mobilidade em bicicleta de uma cidade, e Lisboa precisa urgentemente de elaborar e implementar um bom plano de mobilidade em bicicleta.

(Fonte: mobiped.)

1) aumento do número de ciclistas / viagens feitas em bicicleta

É a maneira mais eficaz de pôr muito mais gente de repente a andar de bicicleta nas ruas, aparentemente (no sistema de Lyon 96 % dos utilizadores não usavam bicicleta no centro da cidade anteriormente) – bom, isso e as portagens urbanas…

(Clique para aumentar. Fonte: mobiped.)

Isso é bom porque dá mais visibilidade aos ciclistas, torna a experiência de andar de bicicleta uma referência cultural mais comum, o que se repercutirá, com o tempo, em maior segurança para todos os utentes do espaço público, e num melhor aprovisionamento das necessidades de quem anda de bicicleta, e em mais gente a andar de bicicleta (só 30 % do tráfego de bicicletas em Paris é em Vélibs, o resto são bicicletas particulares). As dores de crescimento iniciais são as infracções no trânsito, os conflitos entre ciclistas e outros condutores e entre ciclistas e peões, e os acidentes – isto ultrapassa-se com formação e campanhas de sensibilização e educação, e adaptação das ruas da cidade às necessidades e particularidades do trânsito em bicicleta (nomeadamente, permeabilidade máxima), e acalmia de tráfego automóvel.

Aqui há tempos analisei o efeito do Vélib no número de ciclistas em Paris, para provar a tese de que não foram as “ciclovias” parisienses criadas nos últimos anos as responsáveis pelo aumento das viagens em bicicleta, como frequentemente é dito, mas sim o sistema de bikesharing e outros eventos que levaram as pessoas a experimentar a bicicleta.

Fazendo uma análise não-exaustiva do estudo de mobilidade em Paris em 2008, página 11, gráfico da “evolução anual das infraestruturas cicláveis lineares” (isto inclui várias coisas, abertura de ruas de sentido único às bicicletas em contra-sentido, abertura de corredores BUS às bicicletas, “ciclovias”, etc), e página 12, gráfico do índice de evolução anual do número de bicicletas em circulação, combinado com os estudos similares de 2003 e 2006  (os únicos que encontrei publicados), fazendo umas tabelas e umas contas:

Em termos de aumentos anuais:

Considerei os valores do estudo de 2008 (o n.º de Km de vias até 2003 tem valores diferentes entre 1997 e 2003 no estudo de 2003…).

Daqui não salta à vista uma correlação forte que possa indiciar uma relação de causalidade entre “vias cicláveis” e número de ciclistas. Seria interessante poder comparar também a evolução de parques para bicicletas, campanhas de educação e formação de ciclistas, criação de zonas 30, a situação económica, as mudanças demográficas, etc. E, claro, poder desacoplar os vários tipos de “percursos cicláveis” criados (é diferente o design actual na Holanda e o design actual em França, como é diferente o seu contexto: recuperar utilizadores vs. angariar novos utilizadores para a bicicleta).

Há 3 anos cuja discrepância nestes pares de valores é acentuada: 2001, 2003 e 2007:

  • 2001: lei publicada em Janeiro levou à abertura dos corredores BUS às bicicletas (desconheço o impacto efectivo que isto poderia ter tido porque não sei quantos Km de corredores BUS havia para abrir, mas sei que no final de 2003 eram 118 Km, dos quais 47 Km com mín 4.5 m de largura; no final de 2007 eram 129 e 61, respectivamente). De repente, as “vias cicláveis” cresceram 42 %, mas o número de ciclistas só cresceu 6 %. Não houve nada a empurrá-los para experimentarem essas “novas vias cicláveis”.
  • 2003: n.º de ciclistas aumentou 33 % enquanto as “vias cicláveis” cresceram apenas 9 %. As greves nos transportes públicos serão provavelmente a maior causa deste aumento. Independentemente de terem medo ou não de andar na estrada, não tinham alternativas melhores, pelo que se fizeram à estrada, de bicicleta. No ano seguinte o n.º de ciclistas não desceu para os valores anteriores, e as infraestruturas só aumentaram 4 %, o que indicia que as pessoas experimentaram e gostaram, e por isso optaram por continuar com a bicicleta, esquecendo a desculpa do “medo”.
  • 2007: n.º de ciclistas aumentou 31 % enquanto as “vias cicláveis” cresceram apenas 8 %. A entrada em funcionamento do sistema de bikesharing Vélib será provavelmente a maior causa deste aumento. Neste caso as pessoas não foram empurradas para as bicicletas porque as alternativas ficaram de repente muito piores, mas sim porque de repente surgiu uma alternativa melhor do que o habitual. As Vélib tornaram o acesso e utilização da bicicleta *fácil*. Colmatou lacunas de ordem prática: quem recorre às Vélib não tem que ter espaço em casa para ela, não tem que procurar muito por estacionamento (é omnipresente), não tem que se preocupar com roubos, nem tem que despender obrigatoriamente dinheiro algum (na aquisição ou manutenção da bicicleta), e a bicicleta não condiciona em nada quando tem que recorrer à multimodalidade com os TP (ou outros). Além disso, com as Vélib de repente havia bicicletas por todo o lado, à mão de semear, o que despoletou o passo chave na adopção da bicicleta: experimentar (sem compromisso). Mais uma vez, o medo foi um factor facilmente ultrapassado. Gostava de saber como evoluíram estes valores em 2009, mas infelizmente parece que não foi ainda publicado esse estudo.

A impressão geral que eu tenho, pessoalmente, é que são os ciclistas a pedir e/ou a despoletar a criação de infraestruturas “cicláveis”, e não estas a originar mais ciclistas (haverão concerteza excepções que apenas confirmarão a regra).

2) aumento da atractividade e eficiência do transporte público colectivo

As bicicletas – partilhadas e particulares – são muitas vezes usadas para percorrer as pequenas distâncias entre casa e a paragem de autocarro ou estação de comboio, por exemplo, ou entre estes e o local de destino, mal servidas de transportes públicos, ou não servidas de todo, o que aumenta o alcance e a conveniência do sistema global de transporte público. Principalmente fora das horas de ponta e ao fim do dia e noite, e nos movimentos pendulares, especialmente os mais longos (em que a bicicleta sozinha deixa de ser tão competitiva).

Isto permite manter os novos utilizadores do sistema de bikesharing – um sistema de transporte público individual – clientes dos transportes públicos colectivos (93 % dos utilizadores do Velo’v são também utilizadores dos restantes TP), e talvez angariar novos clientes. Por outro lado, é expectável que também se percam alguns clientes, principalmente para as pequenas deslocações e os ‘errands‘ durante o dia (50 % das viagens no Velo’v eram antes feitas em TPC, 51 % no Bicing e 65 % no Vélib – fonte: ICE), mas o mais provável será que haja menos viagens em TPC mas sem grande diminuição nas receitas (pessoas continuam a comprar o passe, quando não o usam no metro e etc usam o bikesharing, receita igual mas menos passageiros – melhor para quem fica, menos apinhado). Em Lyon, a perda de utilizadores dos TPC é baixa pois muitos utilizadores do sistema mantêm o passe ou compram bilhetes individuais para outras deslocações, e 10 % de todos os utilizadores do Vélo’v usam o sistema conjugado com os TPC em viagens multimodais.

3) diminuição do número de deslocações feitas de carro particular

Das viagens feitas no sistema de bikesharing, 7 % eram anteriormente feitas de carro ou mota particular em Lyon, 10 % em Barcelona e 8 % em Paris (fonte: ICE). Isto reflecte-se numa mudança modal do carro particular para a bicicleta insignificante, e a diminuição de poluição, ruído e afins será provavelmente nula ou até negativa se considerarmos que a operação do sistema implica várias carrinhas e afins a reordenar as bicicletas nas estações (levá-las de onde se acumulam para onde escasseiam) todos os dias…

4) diminuição do número de viagens feitas a pé

Os sistemas de bikesharing têm um efeito negativo: fragilizam a cultura pedonal das cidades. Em Lyon, 37 % das viagens no Velo’v eram anteriormente feitas a pé, em Paris, 20 % e em Barcelona 26 % – fonte: ICE). Do ponto de vista individual, do peão, este consegue optimizar os seus tempos de deslocação, mas o andar a pé é fundamental numa cidade próspera, segura, e aprazível, e o único modo de mobilidade verdadeiramente universal. Ao reduzir ainda mais a proporção de deslocações feitas a pé (já em diminuição à medida que tem aumentado o uso do automóvel), a pressão para o adequado aprovisionamento de condições para andar a pé com níveis aceitáveis de acessibilidade, conectividadede, conforto, etc, reduzem-se ainda mais, ao haver um desvio de recursos para servir as necessidades dos modos dominantes: o automóvel, e agora cada vez mais as bicicletas.

Isto é também uma consequência do sistema de preços dos serviços de bikesharing, que privilegia os percursos curtos. De facto, as distâncias médias das viagens são inferiores a 3 Km, em Lyon são de 2.49 Km, a velocidade média de 13.5 Km/h, e o tempo médio das viagens é de 14.7 min.

Qual a importância e o efeito dos sistemas de bikesharing na distribuição modal nas cidades onde são implementados?

  • em cidades com pouco uso do automóvel (ex.: Paris), o potencial de desvio modal do TPC e do andar a pé para o bikesharing é maior do que do automóvel para o bikesharing
  • o efeito do desvio modal carro –> bikesharing, mesmo que pequeno, é mais sentido em cidades com centros muito densos (ex.: Paris)
  • o sistema de bikesharing permite retirar espaço dedicado ao automóvel (nomeadamente, usando lugares de estacionamento para colocar as estações)
  • facilmente se aumenta a % de viagens em bicicleta (ex.: em Paris mais que duplicou)
  • o principal efeito é a diminuição global da % de viagens feitas a pé, que é visível – nos carros, dada a elevada % de partida, é insignificante, e nas bicicletas, dada a insignificante % de partida, o aumento é elevado mas o resultado global ainda é pouco expressivo

Conclusões

Os sistemas de bikesharing bem implementados aumentam significativamente o número de pessoas novas a adoptar a bicicleta no seu quotidiano – usando bicicletas da rede ou bicicletas particulares. Porquê?

O bikesharing tira da equação os inconvenientes do uso de bicicleta própria:

  • o compromisso que implica o investimento inicial na compra da bicicleta
  • a necessidade de ter que passar pelo processo de compra da bicicleta (investigar e escolher, etc)
  • a falta de estacionamento prático e seguro em casa e no trabalho, e em todos os outros locais da cidade (serviços e espaços públicos e comerciais)
  • a preocupação e responsabilidade por roubos
  • as obrigações e os encargos: manutenção, reparações, limpeza, (seguros AP/RC?)
  • a falta de flexibilidade devida às pobres condições de intermodalidade e co-modalidade com os TPC

Os sistemas de bikesharing bem implementados não afectam dramaticamente a fatia da bicicleta na repartição modal. Porquê?

O bikesharing não oferece as vantagens do uso de bicicleta própria:

  • poder usar a bicicleta mais adequada às nossas necessidades e preferências a nível de conforto, usabilidade, performance, capacidade, etc – particulares e empresas, adultos e crianças, famílias, pessoas com necessidades especiais, etc
  • ter sempre uma bicicleta livre garantida (a nossa!) quando precisamos dela
  • poder assegurar que a nossa bicicleta está sempre nas melhores condições de funcionamento (conforto, eficiência e segurança)

O bikesharing não resolve os restantes principais obstáculos à circulação em bicicleta na cidade:

  • relutância natural das pessoas em circular nas vias rodoviárias normais, com o tráfego automóvel, causada por:
  1. “medo dos carros” (medo de acidentes e comportamentos hostis por parte dos condutores de veículos motorizados)
  2. desconforto devido ao ruído e poluição atmosférica, e congestionamento, associados ao elevado número e/ou velocidade dos automóveis
  3. inadequação das vias às características do tráfego de bicicletas – falta de aprovisionamento de rotas curtas e directas (permeabilidade urbana às bicicletas), temporização dos semáforos desadequada, níveis de degradação do pavimento inaceitáveis para bicicletas, falta de sinalização própria, acessos vedados, etc, etc

Assim, uma rede de bikesharing é uma peça-chave para a recuperação da bicicleta como meio de transporte para níveis visíveis, mas não é, de todo, suficiente. Como tal, a sua implementação não pode ser um acto isolado, mas tem que fazer parte de uma estratégia global alargada para a cidade, em que cada acção constrói e beneficia de sinergias com as outras – até para maximizar o sucesso do próprio programa de bikesharing. Essa estratégia global tem que abordar e resolver (ou pelo menos minimizar) os vários factores que, actualmente, constituem um obstáculo e um desincentivo ao uso de bicicleta particular em Lisboa. Estes são razoavelmente consensuais, o que parece levantar polémica é a importância atribuída a cada um individualmente e a eficácia e eficiência das medidas defendidas para os eliminar ou reduzir.