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A outra pandemia

Esta sou eu. E esta é a minha bicicleta. Estávamos no final de Janeiro de 2019.

Eu tinha pouco tempo antes caído ao chão depois de ficar suspensa no ar, após a minha bicicleta ter sido empurrada para a frente e para cima, por baixo de mim, por um carro, vamos chamar-lhe carro Z.

A condutora do carro, uma rapariga ainda jovem, seguia atrás de um outro carro – vamos chamar-lhe carro Y, sem guardar a distância de segurança adequada.

O condutor do carro Y aproximou-se de mim, por trás, e mudou de via repentinamente (não sei se terá ou não sequer colocado o pisca), quando viu um espaço na corrente de tráfego da via adjacente, mas já muito próximo de mim.

Resultado? A condutora do carro Z só me viu quando já vinha a poucos metros atrás de mim e sem indicação prévia nenhuma ou expectativa de vir a deparar-se com algo que a obrigasse a abrandar de repente (era uma ligeira subida e eu devia seguir a qualquer coisa à volta de 15-20 Km/h). Diria que é provável que ela e o condutor do carro que, segundos antes, seguia entre nós, circulassem a qualquer coisa entre os 40 e os 60 Km/h. Penso que não mais que 70 Km/h, e certamente não menos que 35 Km/h.

É muito provável que a minha sorte (de ela não circular a maior velocidade, não ter desviado o olhar para o rádio ou outra coisa no instante crítico, não estar a conversar com alguém no carro ou ao telemóvel,… e ter tido reflexos rápidos ao travar) tenha sido amplificada pela minha posição na via, mesmo diretamente em frente da condutora (posição à esquerda da primária), se estivesse desviada para a direita podia ter sido detectada uma fração de segundo mais tarde que poderia ter feito muita diferença no resultado da colisão.

Travou e, embora ainda colidindo com a minha bicicleta, conseguiu imobilizar o carro sem me chegar a bater no corpo. Mas tirou a bicicleta de debaixo de mim, o que me levou a cair no chão, anca e pulso levando o primeiro impacto com este.

Sentei-me no chão e esperei. Esperei arrefecer e confirmar que estava tudo bem (a adrenalina mascara ferimentos). Liguei ao Bruno. Liguei ao 112 a pedir a polícia e a dispensar ambulância. Esperámos eternidades pela polícia… Vieram.

Fizeram-nos a ambas o teste de alcoolemia. Preencheram um auto de ocorrência. Nós as duas preenchemos a declaração amigável. E fomos todos embora. Nunca tinha estado envolvida numa colisão veicular, nem a conduzir bicicleta nem carro, foi a minha estreia a lidar com o processo associado e a ver como funciona o sistema.

No meio do azar, tive muita sorte. Não me feri. Fiquei ligeiramente dorida na anca e na mão, e parecia que tinha um torcicolo durante uns tempos, mas passou. Não fiquei sequer um dia sem poder trabalhar ou fazer a minha vida normal. Não tive sequelas algumas. Fiquei apenas sem a minha bicicleta por um mês ou dois, até poder ser reparada. E perdi algum tempo a tratar do processo com a seguradora do carro Z, a Fidelidade, que inicialmente também não queria assumir a despesa com o aluguer de uma bicicleta de substituição, como é obrigada por lei, e levou uns 5 meses e alguma pressão, a fazê-lo.

Tinha 38 anos acabados de fazer, e estava grávida de uns 2 meses.

Sobrevivi incólume, tal como o feto, e nada disto afectou o decorrer da gravidez. E não deixei de andar de bicicleta – continuei a fazê-lo até ao dia do parto, não reduzi o seu uso, não fiquei com medo de andar de bicicleta.

Não há razão para deixar de usar a bicicleta no dia-a-dia numa gravidez saudável, e é mais fácil e agradável que andar a pé!

Nos últimos 30 meses, apesar de duros em muitos aspectos (pós-parto, vida com um bebé, pandemia e seus efeitos na vida quotidiana, no trabalho, e nos relacionamentos, na saúde física e mental, etc), tive o privilégio e o prazer de ver o meu primeiro filho a crescer (primeiro neto dos meus pais, primeiro sobrinho dos meus irmãos), de brincar e rir muito com ele, de abraçar novos projetos, de trabalhar com amigos em coisas fixes para melhorar a vida na cidade e juntar pessoas, de produzir coisas com impacto positivo no mundo, de conhecer pessoas novas e lançar pontes para projetos futuros que me dão ânimo e ganas de continuar, de ajudar dezenas de pessoas a aprenderem a andar de bicicleta, de estar com a minha família, de andar de bicicleta (ah, a bicicleta, sempre a salvar a minha saúde mental em todas as situações!),… de viver, com gratidão, amor, sonho e saúde.

Num dos 3 primeiros parklets de Campolide, a inaugurar brevemente. Foto: A Mensagem

Mas podia ter sido tudo muito diferente. Lembro-me bem da cara do Bruno ao chegar junto de mim. Parecia que tinha visto um fantasma. E podia ter visto…

Lembro-me do semblante dele quando penso no companheiro de vida, nos pais, familiares e amigos da Patrizia Paradizo.

Foto: Facebook Patri Paradizo

Tinha 37 anos, estava grávida também, e foi morta no sábado passado na Avenida da Índia, pelo condutor de um carro que a abalroou por trás também, sem justificação aceitável ou compreensível.

“Encandeado pelo sol” não é justificação, pois não podemos circular a uma velocidade superior àquela que nos permitiria imobilizar o carro em caso de necessidade, dadas as condições de visibilidade e outras. Encandeado pelo sol é código desculpabilizante para “ia depressa demais”.

Artigo 24 do CE

1 – O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Fonte: Américo Silva

O carro destruiu a traseira da bicicleta e embateu com violência no corpo da Patrizia, só se imobilizando cerca de 25 metros a seguir ao local onde o corpo da Patrícia tombou. Ela morreu no hospital nesse mesmo dia.

Que dor horrível.

E que angústia tão grande pela absoluta estupidez e evitabilidade de tal morte.

E que frustração por perceber, ao iniciar a escrita deste texto, que eu já tinha dito tudo, quase exactamente 1 ano antes, a propósito da morte da Ana, atropelada ao atravessar a estrada numa passadeira semaforizada. E o que é que mudou? Globalmente, nada.

Andamos todos, e justamente, angustiados com as pessoas que perdemos por causa de doenças, do corona virus, e das outras entretanto deixadas menos atendidas no meio da urgência da covid, e lançamo-nos convictos às soluções que as previnem, à medida que a ciência as descobre. Mas para esta doença, o car-owner-virus, o automobilismo agudo, crónico, que mata, estropia e asfixia milhares de pessoas anualmente, há décadas, rejeitamos a cura e rejeitamos qualquer medida de prevenção do contágio. Negamos até que seja uma doença real.

O “complexo industrial automóvel” é um parasita capaz de alterar a mente dos seres humanos. Não controla só os nossos corpos, controla a nossa mente e o nosso comportamento.

Sim, os insectos sofrem com parasitas destes, mas nós temos as nossas versões também…

Zombies may still be a thing of fiction, but some parasites more or less turn their hosts into the walking dead.

These masters of mind control manipulate their hosts from within, causing them to act in self-destructive ways that ultimately benefit the parasite. (Read “Mindsuckers” in National Geographic magazine.)

“Some parasites can alter the behavior of their host in ways that give the parasite a better home, or provide more nutrients, or cause the host to move to a different environment,” said Janice Moore, a biologist at Colorado State University in Fort Collins.

This strategy seems to work, she added: “A parasite that can alter the behavior of its host, and in doing so improve its own transmission, is going to be favored by natural selection,” she said. (See “World War Z: Could a Zombie Virus Happen?“)

Não acreditam que a indústria automóvel e o carro como objeto seja um parasita alterador da mente? Que outra explicação há para que destruamos o nosso habitat, a ponto de pôr em risco a nossa própria sobrevivência (já nem falo da qualidade de vida…), que preferamos servir melhor as suas necessidades básicas do que as nossas próprias, e em particular as dos nossos filhos (que perderam o direito à rua e à natureza e a uma infância equilibrada), e que sacrifiquemos tudo e todos para que a sua propagação seja a maior e a mais fácil possível?

Eu não quero viver num mundo em que estão 50 ºC lá fora regularmente. Ou furacões. Ou cheias e tempestades… Gosto mais de viver num mundo lindo e habitável do que de andar de carro em deslocações perfeitamente exequíveis em bicicleta, a pé e de transportes públicos…

O carrocentrismo rouba-nos a empatia pelos outros seres humanos. Morrer a andar de carro, numa colisão com outro carro, por culpa nossa ou do outro condutor, é uma tragédia e toda a gente fica condoída. O excesso de velocidade é pecado partilhado coletivamente, ficamos com muita pena quando uma de nós morre por causa disso, dizemos RIP, e seguimos com a nossa vida sem alterar nada. Morrer a andar de bicicleta ou a pé, numa colisão com um carro, causada pelo condutor desse carro, é sempre culpa nossa, porque não temos juízo de saber evitar estradas onde haja pessoas a conduzir de forma perigosa e ilegal, porque “gente como nós” comete infrações, etc, etc, etc. #victimblaming

O carro é sagrado. É santo. O carro não erra. O carro não perdoa, não pede desculpa, não cumpre penitência. Se o carro teve um deslize é porque foi provocado, a culpa é sempre da vítima, se não ia dentro de um carro também, ou então um azar.

Alguém questionou o direito do condutor que morreu neste outro sinistro a circular onde circulava sem ser morto por outro condutor a circular de forma perigosamente irresponsável, como questionam a Patrizia?

Lembram-se da mulher que atropelou outras 3 mulheres, no Terreiro do Paço, depois de se despistar quando circulava a 120 Km/h, mesmo no meio da cidade, numa zona com obras e limite de velocidade de 30 Km/h?

Matou duas delas e feriu e incapacitou para toda a vida a mãe de uma das que morreu. Vejam aqui, aqui, aqui, aqui, e daqui até e tirem as vossas conclusões. Pelos vistos, era uma pessoa normal, como qualquer um de nós. E pelos vistos, era humana e a sua vida foi afectada negativamente pelo sinistro horrífico descrito como cenário de atentado à bomba. Temos medo de ser vítimas, devíamos ter mais (para agirmos de forma diferente quando estamos no papel de potenciais carrascos, pelo menos!). Mas devíamos ter muito mais medo de ser carrascos do que temos…

Deveria ser escusado vincar que por muito sofrimento e perdas que o papel de carrasco possa trazer ao próprio, não se aproxima do sofrimento causado às suas vítimas… Mas é só para lembrar que somos todos vítimas do complexo industrial automóvel, de diferentes maneiras.

Liguei ontem à outra condutora a confirmar o que já deduzira. Não chegou a ser autuada por não ter deixado distância de segurança adequada. Teve um agravamento do seguro. Pagou 150 € no trimestre seguinte, mas quando iria começar a pagar mais 100 € por ano, simplesmente mudou de seguradora…

A outra condutora foi impecável em todo o processo, diga-se. Zero razões de queixa. Não lhe conseguia desejar uma multa, foi sempre uma querida. Mas é inacreditável como nem sequer isso teve, mesmo tendo abalroado uma mulher grávida a circular de bicicleta no centro da cidade. Duas categorias de “utilizador vulnerável”, conforme previsto e “protegido” pelo Código da Estrada desde 2013, numa só pessoa, e praticamente zero consequências.

Artigo 18

O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.

Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de € 60 a € 300.

Artigo 145

1 – No exercício da condução, consideram-se graves as seguintes contraordenações:
ff) O desrespeito das regras e sinais relativos a distância entre veículos, (…)

A legitimação da violência automóvel, como a da violência doméstica, ou a da violência policial, pelo menos para pessoas racializadas, é transversal à nossa sociedade e infecta igualmente os mais altos funcionários do Estado que esperaríamos trabalhar para nos proteger a todos dela.

Fonte: Jornal da Madeira. Conduzia com mais de 1,54 gramas por litro de álcool no sangue, atropelou com violência extrema uma pessoa numa passadeira, e fugiu sem prestar auxílio. A pessoa atropelada morreu. Pena? 480 horas de trabalho a favor da comunidade, 720 euros de multa, e proibição de conduzir veículos motorizados durante 1 ano.

Marcha de urgência ilegítima e passar um sinal vermelho a alta velocidade no centro da cidade, com colisão e feridos, incluindo um com gravidade? Motorista condenado a 21 meses de pena suspensa e 21 meses sem conduzir automóveis – passageiros, seus patrões efectivamente, nada.

Recentemente, o MAI volta a envolver-se num sinistro, este com um morto, uma pessoa a pé a realizar trabalhos de manutenção na A6. Desta vez era o próprio ministro da Administração Interna que seguia como passageiro no carro, conduzido pelo seu motorista, tudo indica a grande velocidade (200 Km/h seria a velocidade média estimada…).

Essa legitimação e a consequente falha em combater tal violência é um reflexo e um resultado dessa infecção dos órgãos mais altos da sociedade dedicados não a manter-nos a todos livres da violência automóvel, mas simplesmente a observá-la, medi-la e analisá-la superficialmente, e informar regulamente o resto da sociedade de quantas pessoas é suposto aceitarmos que morram ou tenham as suas vidas destruídas, para que possamos continuar a acomodar e a propagar esta infeção da automobilidade aguda.

Portugal aparece em branco neste mapa global interativo de vilas e cidades com zero mortes no trânsito.

E quando vêm com aquela treta da cultura…Olhem, os espanhóis não estão assim tão distantes de nós culturalmente, e não deixam de ter melhores exemplos que nós. Lembram-se da conversa recente do presidente da câmara de Pontevedra n’A Brasileira?

Lendo e ouvindo as várias entrevistas, é claro que o facto de ele ser médico ajudou a este resultado. Ele foi capaz de reconhecer a doença, o agente causador, e reduzir a sua presença na cidade (em volume e velocidade) a níveis compatíveis com a vida.

Segundo a ANSR, em 2020, 63 % das infrações fiscalizadas (não de todas as infrações, mas aquelas que foram fiscalizadas) foram de excesso de velocidade. Segundo eles, em 2019 toda esta violência custa-nos a todos 3.714 milhões de euros, o que equivale a praticamente 1,6% do PIB Nacional. Comparem com a covid e percebem que isto é uma pandemia ainda pior, que toleramos como se não houvesse vacina, há décadas. E isto é só o custo da sinistralidade, não é o custo em construir e adaptar o país todo para o uso intenso e generalizado do carro, altamente subsidiado…

O último relatório de sinistralidade que ainda trazia alguma informação sobre as potenciais causas dos sinistros foi o de 2018, os seguintes já não incluem isso. Mas sempre me lembro, todos os anos a ler relatórios, de achar “não consigo tirar informação nenhuma útil daqui”.

E porque é que estamos aqui? Por isto:

Somos uma nódoa a fiscalizar e punir infrações de trânsito (ver aqui e aqui). Aqui em Portugal isso é logo apelidado de “caça à multa” em vez de eficiência e eficácia na prevenção de perdas humanas e económicas. *sigh*

A Patrizia morreu esta semana, de forma violenta. Andar de bicicleta é demasiado perigoso, não é melhor deixar de o fazer? Pelo menos onde a malta costuma conduzir carros de forma mais perigosa?

Não, não é melhor deixar de o fazer, por várias ordens de razões.

Deixar de ir de bicicleta e ir de quê? De carro? A pé? O risco de morte por sinistro por hora de exposição é similar, por isso seria ilógico trocar um pelo outro por essa razão.

Deixar de ir pelas ruas onde a malta anda mais depressa? A malta anda depressa em todo o lado onde e sempre que não haja grandes congestionamentos automóveis ou medidas físicas de acalmia de tráfego, não sei se já repararam… Além disso, as grandes avenidas são frequentemente as rotas mais diretas, rápidas e fisicamente confortáveis (mesmo que não psicologicamente), e isso é muito importante para a função transporte, não é por ir de bicicleta que posso dar-me ao luxo de gastar mais tempo do que o necessário a deslocar-me no dia-a-dia. Por outro lado, sabem o que é que acontece quando removemos os veículos mais lentos das estradas que temos? Aumentamos a velocidade dos mais rápidos que lá ficam e, logo, o perigo rodoviário. As bicicletas funcionam intrinsecamente como pace cars. Quando as tiramos da estrada e as metemos em ciclovias ao lado, ou noutras ruas, ou arrumadas nas varandas, aumentamos a velocidade dos carros. Percebem a lógica aqui?… Não vou contribuir para isso, vou continuar a usar as vias que melhor me servirem consoante a natureza da deslocação e os critérios que forem mais importantes para mim naquele momento, e no processo, humanizar a cidade, e fazer priming aos outros condutores para esperarem bicicletas ali. Precisamos é de mais bicicletas nestas avenidas, e mais carros conduzidos de forma responsável.

Deixar de ir de bicicleta e passar a usar o carro no lugar desta? Nah, demasiado stressante de conduzir, sempre com medo de matar alguém, ou de ser morta pelo condutor de outro carro, sempre em alerta para contrariar todos os sinais que o ambiente à minha volta me envia constantemente para andar mais depressa do que é realmente seguro e responsável e ético, a angústia de estar a contribuir para os problemas de poluição e saúde pública, esgotamento de recursos naturais, alterações climáticas,.. Não quero isso para a minha vida quotidiana, já basta nas poucas ocasiões quando tenho “mesmo” que ir de carro. E o sedentarismo? E o tempo perdido no trânsito? Para quê sujeitar-me a tal coisa?…

Se tenho medo de morrer a andar de bicicleta? Morrer todos morremos, não temos muito controlo sobre isso, doenças, acidentes, conflitos, tanta desgraça que pode acontecer-nos… Mas temos controlo sobre como vivemos. E eu quero viver andando de bicicleta, dá-me imenso prazer, mantém-me feliz e saudável e não prejudica ninguém. Deixar de andar de bicicleta e de beneficiar de tudo e do tanto que ela me dá TODOS OS DIAS (a função transporte é só uma parte) por medo de morrer era uma espécie de morte em vida e recuso-me a tal coisa. Estou certa de que a Patrizia concordaria comigo, e também por ela, vou continuar a fazer aquilo que me faz feliz, enquanto posso.

Foto: Facebook da Patrizia Paradizo

Quero viver e ter liberdade para o fazer nos meus próprios termos. Mas realmente agradecia muito se quem deseja viver de outra maneira diferente o possa fazer sem me matar a mim ou aos meus, pelo menos tão diretamente como numa colisão, é demasiado bárbaro… E por isso, amanhã, um ano depois da da Ana, teremos uma vigília pela Patrizia, e hoje várias associações emitiram um comunicado. Por esta ideia revolucionária: ‘bora não nos matarmos uns aos outros, pelo menos quando nem sequer queremos realmente matarmo-nos uns aos outros…

Queremos cidades construídas para as pessoas andarem à vontade, não para os carros andarem à vontade.

Queremos polícias e tribunais que fiscalizam e punem eficazmente as infrações que causam os sinistros graves.

E queremos censura social sobre o bullying veicular.

Por cidades onde a morte não seja um efeito colateral normal de nos movermos nela, seja lá qual for a forma em que escolhermos fazê-lo.

Duas fotos, duas situações parecidas, duas histórias diferentes, só uma delas pôde continuar a ser escrita. Velocidade a mais, vida a menos!

Está na hora de agir. Comecemos por demonstrar essa vontade marcando presença na vigília deste sábado.

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Cenas a Pedal no Manhãzitos da 3

No passado dia 3 de Junho, Dia Mundial da Bicicleta, deram-nos tempo de antena nos Manhãzitos da 3, na Antena 3, e falámos sobre o fixe que é andar de bicicleta 😍, sobre o que fazemos na Escola de Bicicleta da Cenas a Pedal e o que estamos a desenvolver na frente digital com o impulso do Fundo Ambiental, e sobre como estamos sempre a tempo de aderir à bicicleta e beneficiar do tanto que ela nos dá. 😊

https://open.spotify.com/episode/3UbVrL1PR27OQaMAAokWww?si=g-0HzQOuShOJ-fRnvBbn-w&utm_source=whatsapp&nd=1
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Cenas para ver e ouvir

Então, maltinha, fartos das redes sociais? Andam a leste? Fazem muito bem. Ora aqui está um apanhado de umas conversas fixes que podem ter perdido no meio do vosso detox digital. 🙂

A Cicloda (aka Cicloficina) tem organizado, em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa, uma série de tertúlias online cobrindo vários temas. O ciclo começou em Abril e eu tive a oportunidade de participar agora no início de Junho num sobre Bicicletas e Férias, e aproveito para o sugerir como primeiro a assistir, nãos estivéssemos nós bem entrados na época alta das viagens a pedal. 😉

Mas esta é só uma das tertúlias, não percam as outras. Eu gostei partcularmente desta, sobre Bicicletas e Mulheres!

Antes deste ciclo, entre o fim de Fevereiro e o início de Março, o Rafael Polónia, da Landescape, organizou uma série de conversas one-on-one ao vivo no Facebook. Umas foram mais claramente à volta do tema das viagens: com a Tânia Muxima, o Paulo Guerra Santos (e o seu guia), o Jorge Vassalo (do mítico Até onde Vais com 1000 Euros?), com o Gonçalo Peres, e com o João e a Valerie (do Pedalar Devagar). Mas também abordou outros temas laterais, comigo e com a Laura Alves.

https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158471399508241/
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158473938548241/
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158478192288241/
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158484813383241/
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158486391183241
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158490732643241/
https://www.facebook.com/orafaeldapolonia/videos/10158495966998241/

E finalmente, deixo também o 2º episódio do podcast De Ventos em Popa, da Roda dos Ventos, em que o Tiago Carvalho entrevista a Inês Sanches, dos projetos Femina e Selim.

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Apoios à aquisição de bicicletas 2021

Fundo Ambiental

Depois da pressão da MUBi, em 2019 o programa de Incentivo à Introdução no Consumo de Veículos de Baixas Emissões, gerido pelo Fundo Ambiental, passou a incluir também bicicletas elétricas. E após mais pressão da MUBi, em 2020 foi alargado para bicicletas de carga.

Atualmente, em 2021, este programa apoia a aquisição, por pessoas singulares e por pessoas colectivas, de bicicletas:

  • convencionais (20 %, e máximo 100 €)
  • bicicletas elétricas (50 %, e máximo 350 €)
  • bicicletas de carga (50 %, e máximo 500 €)
  • bicicletas de carga elétricas (50 % e máximo 1000 €)

E está a ser muito procurado, tendo esgotado rapidamente os apoios para as bicicletas convencionais e para as bicicletas elétricas. Embora, as candidaturas continuam abertas – espera-se (fazendo a MUBi lobby para isso), que o fundo seja reforçado para as cobrir. Nesta data (14/06/2021), ainda há apoios disponíveis para as bicicletas de carga. O incentivo só se aplica a bicicletas novas e destinadas a uso citadino, não cobrindo bicicletas destinadas a uso desportivo.

Ideias para melhoria

Um próximo passo mais coerente com os objetivos deste programa do Fundo Ambiental de «aceleração da apropriação de energias de tração alternativas e ambientalmente mais favoráveis», de descarbonização do sector dos transportes e de fomento dos modos ativos, seria o programa deixar de financiar separadamente automóveis e velocípedes. Poderia passar para uma categorização que permita às bicicletas competirem com os carros, e atribuir apoios baseados em valores máximos absolutos em vez de limitados a uma percentagem. Eventualmente poderia salvaguar uma quota mínima para as bicicletas, mas se calhar já nem precisaríamos disso, uma vez regularizada a cadeia de produção internacional, em disrupção desde o início da pandemia da covid19.

Por exemplo, usando os montantes deste ano, teríamos:

  • 3.000 €, aplicável a motociclos ou ciclomotores elétricos, automóveis ligeiros de passageiros, elétricos, ou a bicicletas elétricas e acessórios para transporte de carga ou passageiros (atrelados, cadeiras, sacos, etc)
  • 6.000 €, aplicável a automóveis ligeiros de mercadorias, elétricos, ou a bicicletas de carga elétricas ou convencionais, ou a bicicletas elétricas ou convencionais adaptadas para pessoas com limitações motoras
  • 350 €, aplicável a bicicletas convencionais, atrelados, e kits de conversão carga ou elétrica

Isto permitiria às pessoas e às organizações otimizarem o valor do apoio e do seu investimento próprio, valorizando as vantagens competitivas das bicicletas e tomando decisões mais racionais.

Além disso, permitiria o acesso às bicicletas elétricas e de carga, e às bicicletas adaptadas, em particular, a uma grande parte da população que poderia beneficiar imenso delas mas que atualmente não tem capacidade financeira para investir nas mesmas, mesmo com os apoios em vigor. (Faltam 2-3 coisas essenciais: um programa de crédito bancário barato e de fácil acesso, e provisão de estacionamento seguro e prático para bicicletas de carga e bicicletas elétricas nos edifícios residenciais ou nas ruas dos mesmos, e oferta no mercado de seguros contra furto a um preço razoável.)

Mesmo que não o façam, seria bom o progama passar a incluir também bicicletas adaptadas, elétricas e não elétricas, no apoio, ao mesmo nível do atribuído às bicicletas de carga, pois as bicicletas adaptadas são tão ou mais caras quantos as de carga, e ainda atrelados de carga e de transporte de animais, kits de conversão de bicicletas em bicicletas e triciclos de carga, e kits de assistência elétrica.

A par disto, seria positivo passar a restringir os apoios a bicicletas compradas a entidades nacionais / locais, de forma a beneficiar o tecido económico local e a facilitar a assistência, garantia e pós-venda. Isto permitiria ainda alavancar o impacto do programa ao levar a que os beneficiários funcionassem como agentes de divulgação destes tipos de veículos mais utilitários junto das lojas de bicicletas nacionais, ainda muito focadas apenas no desporto, e servissem de pretexto para estas lojas encetarem ou reforçarem contactos e relações com fornecedores estrangeiros.

Câmara Municipal de Lisboa

Entretanto, estes apoios do Fundo Ambiental, são acumuláveis com os apoios do Programa de Apoio à Aquisição de Bicicletas do Município de Lisboa, iniciado em 2020, entretanto reaberto e expandido em 2021, e aberto a pessoas singulares – quem viva, estude ou trabalhe nesta cidade, bem como a empresas e a empresários em nome individual, a Juntas de Freguesia e a instituições sem fins lucrativos.

Atualmente, em 2021, este programa da CML apoia a aquisição de:

  • bicicletas convencionais (50 %, e máximo 100 €)
  • bicicletas elétricas (50 %, e máximo 350 €)
  • bicicletas de carga (50 %, e máximo 300 €)
  • bicicletas de carga elétricas (50 % e máximo 500 €)
  • bicicletas adaptadas (75 %, e máximo 200 €)
  • e bicicletas adaptadas elétricas (75 %, e máximo 500 €).

Este incentivo também só se aplica a bicicletas novas e destinadas a uso citadino, não cobrindo bicicletas destinadas a uso desportivo.

Este ano o programa da Câmara Municipal de Lisboa apoia ainda a reparação de bicicletas (50 % do valor de materiais e serviços de reparação, até um máximo de 80 €) e a compra de alguns acessórios (50 % do valor de acessórios de segurança – luzes e cadeados, entre outros – e de transporte de crianças – cadeiras, atrelados, trail-a-bikes, até um máximo de 80 €). Isto é importante porque permite às pessoas beneficiar de um incentivo à recuperação / reconversão de bicicletas que já possuam, ou de bicicletas usadas, para um novo uso, tornando a bicicleta mais acessível a mais pessoas, e contribuindo para a reutilização de bens e materiais já existentes (evitar que acabem no lixo mais tarde, e evitar o consumo de novos materiais).

Os produtos e serviços têm que ser adquiridos a lojas/oficinas locais, sediadas ou em funcionamento em Lisboa, o que ajuda a fortalecer o sector local, promove a construção de comunidade, reduz os problemas de garantia e pós-venda, e estimula as lojas locais a terem mais contacto e experiência com bicicletas utilitárias. Claro que nós somos uma loja aderente! Mas há muitas mais.

O prazo de candidaturas fecha dia 30 de Novembro de 2021, ou antes se o fundo esgotar.

Ideias para melhoria

A nível de melhoria do programa da CML, diria que apoiar a formação em condução seria um passo lógico, que tornaria a adesão à bicicleta acessível a mais pessoas e melhoraria o nível de segurança das que já a usam, embora imagino que pudesse ser muito mais difícil de evitar a fraude, e que surgiriam de repente milhentos novos “instrutores de bicicleta”, a vender serviços fictícios ou a serviços não qualificados, o que dada a natureza da atividade (a bicicleta é um veículo, e em que nos deslocamos facilmente a velocidades muito superiores ao andar a pé – 15-40 Km/h, na proximidade de outros veículos e de pessoas a pé), poderia ser contraproducente. Mas pronto, era realmente muito bom que formação como a que desenvolvemos, presencialmente e online, pudesse ser tornada mais acessível e pudesse chegar a mais pessoas que dela beneficiassem, pois ter uma bicicleta não basta para termos uma boa experiência a usá-la.

Seria bom também que o programa apoiasse a compra de atrelados de carga e de transporte de animais, de kits de conversão de bicicletas em bicicletas e triciclos de carga, e de kits de assistência elétrica, aumentando o valor do apoio para 350 € ou 500 €, ajudando as pessoas a usar as bicicletas que já têm, mas tendo o apoio para expandir a sua capacidade para o nível de bicicleta de carga / bicicleta elétrica.

Mas o que são bicicletas de carga?

O mercado oferece cada vez mais soluções utilitárias e por vezes é difícil identificar fronteiras claras. Como costumamos dizer, todas as bicicletas são bicicletas de carga. 🙂 Ou seja, o que queremos dizer é que todas as bicicletas não de desporto mesmo a sério, têm uma enorme capacidade utilitária, com os acessórios certos.

Contudo, claro que depois isto é um espectro, de uma bicicleta normal otimizada com acessórios até bicicletas de carga de diferentes tipos, algumas autênticas “carrinhas”, passando pelos tandem. 🙂

As candidaturas a estes dois apoios aqui descritos, são sempre alvo de avaliação, e eles têm lá os seus critérios. Mas bicicletas de carga começam nas midtails e “butcher’s bikes”, que têm uma capacidade de carga ligeiramente maior do que bicicletas convencionais, sendo que às vezes nem se percebe logo ao olhar para elas, e as bakfietsen mais compactas, e vão por aí afora pelas longtails e bakfietsen de maior capacidade, e triciclos. Alguns exemplos básicos:

As bicicletas de carga minimamente equipadas começam, tipicamente, nos cerca de 1.500 €, e as elétricas de carga começam geralmente nos cerca de 3.500 €. Mas o mais comum é rondarem os 5.000-6.000 € já com os acessórios todos.

E o que são bicicletas adaptadas?

As soluções para pessoas com limitações motoras também incluem uma grande diversidade de formatos. Podem ser bicicletas, triciclos, atrelados, andadores, kits de conversão para cadeiras de rodas, etc. Podem ser para a pessoa poder deslocar-se autonomamente sozinha, para ser transportada passivamente por outra pessoa que conduza e pedale, ou para deslocar-se pedalando mas em tandem com outra pessoa que conduza. Abaixo partilhamos um documento que dá uma ideia básica de tipos de soluções e preços.

Interessados? Podemos tentar ajudar. O primeiro passo é facultarem-nos a informação básica, através deste formulário. Temos alguns modelos disponíveis para teste de condução, e fazemos a ponte com donos de outros modelos.

Para quem não conhece a nossa história e o que fazemos e como fazemos: não mantemos bicicletas novas em stock, é tudo encomendado de propósito para cada cliente, consoante as suas necessidades. A pandemia da covid19 criou uma disrupção nas cadeias internacionais de produção de bicicletas (e não só), o que criou problemas de fornecimento e aumento de preços. Ao mesmo tempo, houve uma explosão na procura de bicicletas. Tempestade perfeita: muita procura e pouca oferta, é normal não encontrar bicicletas nas lojas, e é normal ter que encomendar bicicletas com 6 meses de espera. Os especialistas dizem que só em 2023 as coisas se restabelecerão, e que até lá irá continuar a ser difícil comprar bicicletas, e que os preços deverão aumentar mais. Tenham isto em conta quando contactam lojas e quando decidem avançar com encomendas, e concorrer a apoios, OK?

Entretanto, sim, temos bicicletas que têm prazos de entrega de 6 meses ou mais, mas também temos outras que chegam em 2 semanas. 🙂 Preencham lá o formuláriozinho e logo conversamos!

Conclusões

Há apoios nacionais e apoios locais acumuláveis, pelo que pode-se conseguir um apoio máximo de 1580 € na compra de uma bicicleta de carga elétrica, o trabalho das organizações da sociedade civil como a MUBi são fundamentais para as coisas evoluírem, por isso colaborem (tornem-se voluntários e judem no trabalho, dêem donativos monetários se não têm tempo para dar, e partilhem os sites e os trabalho das organizações nas vossas redes), e não adiem as vossas decisões de compra porque os fundos esgotam, há falta generalizada de stock de bicicletas até 2022-2023, e pró ano pode sempre não haver apoios…

Entretanto, um #ativismodesofá acessível a qualquer um é mandar um email para e/ou para e deixar sugestões de melhoria como as que avançámos aqui. 😉

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Era inaceitável mesmo que ela tivesse passado com o vermelho

A Ana tinha 16 anos e morreu na semana passada.

Morreu atropelada numa passadeira de peões. Caminhava com uma bicicleta pela mão (a bicicleta, aqui, é pouco relevante), viu o sinal verde e avançou, confiando na infraestrutura e nas regras de trânsito e na responsabilidade dos condutores de automóvel.

O “Manuel” (vamos chamar-lhe assim, visto ninguém ter divulgado o seu nome) tem 19 anos e matou a Ana na semana passada. Conduzia um automóvel, não terá visto ou viu mas não respeitou o sinal vermelho, e atropelou a Ana, apesar da visibilidade para o passeio e para a passadeira ser perfeita. Atropelou-a a uma velocidade tal que lhe causou a morte uns dias depois. 

A Ana morreu, não está cá para lamentar ter perdido a vida, ter perdido a oportunidade de viver a sua vida, de fazer as coisas que sonhava fazer. Mas estão cá os seus pais, os seus familiares, os seus amigos, que terão que continuar a viver com o choque, a dor da perda e a revolta por uma morte violenta e principalmente, perfeitamente evitável. 

Por que achamos aceitável matar um filho ou uma filha a alguém?

Por que achamos aceitável matar um pai ou uma mãe a alguém?

É que fazemo-lo anualmente, matamos cerca de 600 filhos e/ou pais de outras pessoas. E ferimos gravemente milhares de outros. E nada fazemos para impedir eficazmente isto, ano após ano.

O “Manuel” vai ter que viver sabendo que matou uma pessoa. O que vai isso fazer à sua vida? À sua saúde mental, à sua relação consigo próprio e com os outros? 

Claro que o normal é querermos linchar o “Manuel”. Ele infringiu duas regras, aparentemente. Cometeu um erro e em consequência alguém morreu.

Sim, o “Manuel” deveria ser punido exemplarmente. Mas não basta ser só ele. Têm que ser todos os “Manuéis”, e principalmente, todos os “Manuéis” que vão cometendo estas infrações sem matar nem atropelar ninguém. Antes que atropelem e matem alguém…

Mas o “Manuel” é também uma vítima deste ambiente tóxico que estimula e permite comportamentos perigosos na condução de veículos automóveis. Todos nós, quando conduzimos automóveis, caímos, uns mais, outros menos, nos mesmos erros – excesso de velocidade, manobras perigosas, distrações – simplesmente a maior parte de nós tem a sorte de não acabar matando alguém. O “Manuel” somos nós todos, só que num dia “de azar”.

Sim, temos que ter melhores leis, mas temos depois que ter melhor fiscalização (muito melhor, que somos uma anedota a este nível), e também temos que ter um melhor sistema judicial, um que não deixe prescrever as coimas, um que em julgamento não desculpabilize quem cometa infrações graves, perigosas, e crimes rodoviários.

E sim, precisamos de melhor formação ao tirar a Carta de Condução, e de ações de reciclagem e revalidação regulares ao longo da vida.

E sim, precisamos que os media e toda a gente pare de noticiar estas colisões e estes atropelamentos desta forma:

  • usando a palavra acidente, em vez de colisão ou sinistro – não são acidentes, e isto perpetua  ideia de que não temos poder para os evitar, e temos!
  • fraseando as coisas para fazer parecer que são os carros que matam, que estes já são autónomos (ex.: «Carro ‘voou’ para dentro da BP em aparatoso acidente.», «O carro despistou-se numa curva», «o carro não viu», «o carro não parou», etc, etc. Os carros ainda não têm vontade própria, são conduzidos por pessoas e são as ações destas que, tipicamente, geram colisões. Temos que parar de as desculpabilizar com as palavras.
  • focando-se exclusivamente na vítima, as imagens são do local, ou do veículo, ou do corpo da vítima (principal), reforçando novamente a sensação de impotência e de vulnerabilidade, e o medo de morrer de quem já mais morre – o foco deve ir primeiro para quem mata e quem fere, queremos disseminar o perfil do agressor, só assim podemos, a nível de políticas públicas, perceber onde e como intervir. As notícias não devem servir para disseminar junto das potenciais vítimas o medo de morrer, devem servir principalmente para disseminar junto dos potenciais agressores o medo de matar (e depois também o medo de ser efetivamente punido por fazê-lo!).
  • apontando apenas alegadas falhas de vítimas e de agressores, deixando de lado as falhas das entidades públicas no desenho do ambiente envolvente.

E sim, precisamos de deixar de permitir a publicidade a automóveis associada a comportamentos perigosos, como a velocidade ou a agressividade.

Mas o principal, aquilo que salva vidas, aquilo que previne eficazmente histórias trágicas como a da Ana e a do “Manuel”, é organizar o ambiente urbano e o ambiente rodoviário, e os próprios veículos, de forma a que erros normais, erros naturais, erros observáveis sistematicamente, não acabem com alguém morto ou gravemente ferido.

O “Manuel” cometeu vários erros de condução, e infringiu várias leis, aparentemente, e por isso a culpa da morte da Ana é dele. E podemos, naturalmente, porque somos apenas humanos, dirigir para ele todo o nosso ódio, a nossa revolta, a nossa angústia, por ter roubado a Ana aos seus, e a si própria. E nós sabemos que a Ana poderia ser qualquer um de nós, e qualquer um dos nossos. Mas fazê-lo é injusto, e inútil. Devemos dirigir a nossa raiva para ações que efetivamente levem a mudanças estruturais que previnam coisas destas de acontecer.

É que a culpa é dele também, mas não é só dele. É dos arquitectos das nossas cidades, é dos arquitectos destes ambientes em que para agir de forma prudente temos que ser mais informados que o normal, termos mais empatia do que o normal, termos maior sentido de responsabilidade do que o normal, estarmos mais despertos do que o normal, estarmos menos cansados do que o normal, estarmos mais atentos e concentrados do que o normal. Quando devia ser o contrário, devíamos circular em ambientes em que o piloto automático é prudente, e em que para fazermos asneiras temos que as fazer consciente e deliberadamente.

E se tivesse sido a Ana a passar o sinal vermelho? O “Manuel” passaria a ser visto como uma pobre vítima, para sempre traumatizada, e a Ana passaria a ser vista como infeliz merecedora da sua má sorte. Uma morte trágica, mas causada pelo seu próprio comportamento.

Esta dicotomia do culpado / não culpado é infeliz. Esta dicotomia é o que nos leva precocemente 600 pessoas todos os anos, e o que nos deixa uns milhares estropiados. Preocupamo-nos em definir quem tem a culpa em caso de colisão, em vez de garantir que essa colisão nunca chega a ocorrer, com culpa ou sem culpa seja de quem for.

Sabemos que 90 % das colisões envolvem erro humano. E sabemos que destas, 90 % envolvem velocidades altas, desadequadas. Não é óbvio que temos que desenhar o nosso ambiente urbano e o nosso ambiente rodoviário, para que, quando os erros acontecem, que acontecerão, invariavelmente, seja de quem for, tal não resulte na morte ou grave ferimento de ninguém? E que isso passa, principalmente, por condicionar física e psicologicamente a velocidade de circulação dos veículos automóveis conduzidos por esses mesmos humanos?

Se baixarmos – por desenho – a velocidade máxima de circulação dos automóveis em meio urbano (e em povoações), de 50 Km/h (teóricos, porque a maior parte dos condutores circula a mais que isso) para 30 Km/h efetivos, garantimos que haverão muito menos colisões, e que as que houver terão 9 em cada 10 pessoas a sobreviver, em vez de apenas 1 em cada 10.

Até quando vamos aceitar manter as nossas crianças e os nossos velhos tristemente reféns em espaços fechados, impedidos de estar e de circular na cidade de forma autónoma, para que nós possamos circular pela cidade a velocidades incompatíveis com a vida, só porque sim?

Quantas pessoas achamos aceitável que morram ou que fiquem estropiadas para que nós possamos exceder os 30 Km/h no meio das cidades ao volante de um objeto de 1 ou 2 toneladas? E quantas destas pessoas podem ser das “nossas”? Aceitamos que nos possam, a qualquer momento, matar um filho, para que possamos todos, coletivamente, conduzir de forma perigosa, e por motivos fúteis?

Por que é que matámos uma filha aos pais da Ana? O que é que vamos fazer para que mais nenhum pai nem nenhuma mãe perca um filho desta forma estúpida? Para que mais ninguém fique sem um irmão, ou sem um pai ou uma mãe desta forma violenta e evitável?…

Hoje, às 19h, estaremos na vigília.

Mas não confundir uma vigília destas com ação. Se queremos mudança temos que fazer lobby junto do governo, junto do parlamento, junto dos partidos, junto da ANSR, junto de n outras entidades públicas. E temos que fazer pressão também junto de entidades privadas, como as escolas de condução, os media, as empresas de transportes coletivos, as empresas de logística, etc, etc. Tornarmo-nos sócios e apoiar o trabalho de associações como a MUBi, e um pouco de #ativismodesofá, mandar mails, mandar cartas, escrever “cartas do leitor” para jornais, intervir em programas de rádio e de TV, etc. 

Temos que mudar o paradigma para ele depois nos mudar a nós.