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História do Código da Estrada e as bicicletas

Contam-se este ano, 2018, já 123 anos de coexistência de carros e bicicletas em Portugal. É interessante analisar como evoluiu a sociedade face ao uso destes dois meios de transporte, à luz do Código da Estrada. Andava à procura de informação para um argumento qualquer num dos cursos que damos na Escola de Bicicleta da Cenas a Pedal, e embrenhei-me tanto na pesquisa que acabei por fazer um apanhado da história do Código da Estrada e as bicicletas, que aqui partilho. 🙂

1895: o início do automobilismo em Portugal

Segundo João Vasco Matos Neves, foi em 1895 que um veículo automóvel circulou pela primeira vez em Portugal. Aquele modelo Panhard & Levassor era literalmente uma carroça sem animais a puxá-la, não era ainda um veículo para o qual se entrava. Andava-se em cima do carro, e não dentro dele. 

Fonte: Sol

A sua velocidade máxima era de 20 Km/h, mas as estradas portuguesas não tinham condições para tal. E foi logo na primeira viagem, de Lisboa a Santiago do Cacém, que o primeiro automóvel a circular em Portugal fez uma vítima mortal, um burro que não saíu da sua frente. 

Hoje em dia, anualmente e só em Portugal, 500 pessoas morrem e 41.000 ficam feridas em sinistros automóveis, e 6.600 morrem devido à poluição atmosférica e sonora causada pelo tráfego automóvel.

1901: os primeiros regulamentos de circulação

Segundo Pedro Miguel Silva, assessor da Presidência da ANSR, foi em 1901 e 1911 que se publicaram em Portugal os primeiros regulamentos sobre a circulação dos automóveis. Dentro das localidades a velocidade máxima seria 10 Km/h.

1928: a supremacia das pessoas em veículos sobre as pessoas a pé

Foi em 1928 que se implementou o início da supremacia das pessoas em veículos sobre as pessoas a pé no espaço público, ao proibir estas últimas de estacionar ou circular nas vias públicas, tendo ficado limitadas aos passeios e bermas que para elas ficaram reservados. O limite máximo de velocidade dentro das localidades passou para 30 Km/h. 

Foi neste ano que se alterou o sentido de circulação dos veículos, passámos a circular pela direita (excepto no caso dos comboios, que se mantêm até hoje a circular pela esquerda).

Neste regulamento determinava-se que os veículos deveriam circular pela direita da via pública, deixando livre a esquerda; e que ao serem ultrapassados deveriam deixar livre pelo menos metade da estrada para veículos ou animais ou pelo menos 2 m para peões ou ciclistas. 

1930: até 50 Km/h nas localidades

Em 1930 passou a dizer apenas para se deixar pelo menos metade da estrada livre, e facultar a ultrapassagem deixando o espaço livre necessário ao outro veículo.

Em 1930 aumentaram para 50 Km/h a velocidade máxima dentro das localidades, abrindo o caminho para a dramática sinistralidade rodoviária que assola o país até hoje, e para a desertificação humana do espaço público. 

1954: matrícula, segregação e limitação ao transporte de passageiros em velocípedes

Em 1954 aumentaram o limite de velocidade dentro das localidades para 60 Km/h, não havendo limite fora das localidades.

Foi também neste ano que se limitou a utilidade dos velocípedes ao condicionar a sua lotação ao número de pares de pedais capazes de accionar estes veículos.

Através deste decreto, os velocípedes e os carros puxados a animais passaram a precisar de matrícula, como os veículos automóveis desde 1928.

Surgiram os sinais de pistas obrigatórias para velocípedes (e também de pistas obrigatórias para cavaleiros).

pistas para velocípedes e para cavaleiros

Em 1954 o Código da Estrada previa marcas longitudinais na estrada, para delimitar filas de trânsito. Determinava apenas que os condutores deveriam manter os seus veículos do lado direito das linhas.

1994: a despromoção dos velocípedes como meios de transporte

Foi em 1994 que se implementou a supremacia das pessoas em veículos automóveis sobre as pessoas nos outros veículos – nomeadamente velocípedes e carroças – atribuindo-lhes prioridade à custa da segurança, conveniência e comodidade destas últimas.

Na aplicação da regra geral da prioridade, de ceder passagem a quem se apresenta pela direita, passou a discriminar-se negativamente as pessoas que circulassem em velocípedes, ou em carroças, ou com animais – estas nunca tinham direito a passar primeiro do que as pessoas que circulassem em automóveis, mesmo que se apresentassem à direita destes. 

Proibiram-se os velocípedes e afins de circular nas auto-estradas (mesmo pela berma, mesmo quando a AE pudesse ser a única estrada ou a mais directa).

Proibiram-se os triciclos e as bicicletas com atrelado de circularem nas pistas para velocípedes.

Surgiram novas regras para os condutores de veículos de duas rodas (não tirar mãos do guiador ou os pés dos pedais, etc) e não circular a par, algo desajustadas para o caso dos velocípedes.

E foi neste ano que foi criada a pior lei de todas contra os utilizadores de bicicleta, cujos efeitos sofremos até hoje: os velocípedes deveriam circular pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios (como todos os outros veículos a partir de então), mesmo quando fossem possíveis duas ou mais filas no mesmo sentido de trânsito. Basicamente isto traduziu-se ao longo do tempo, na mente do público, como significando que os velocípedes nunca podiam circular no centro da via, e tinham que deixar o caminho livre para os automóveis em todas as circunstâncias. Ainda hoje muita gente crê nisto.

Foi ainda em 1994 que se proibiu o transporte de passageiros nos velocípedes (independentemente do número de pares de pedais), e nos seus atrelados. E foi neste ano que a matrícula deixou de ser obrigatória para os velocípedes.

1998: a definitiva subalternização dos condutores de velocípedes

Em 1998 houve uma revisão ao CE que instituiu explicitamente que os condutores de veículos não motorizados tinham que ceder sempre (excepto na saída de caminhos particulares) passagem aos veículos a motor, ou seja, face a 1994, uma pessoa num velocípede dentro de uma rotunda agora tinha que – ao contrário dos restantes veículos – parar e deixar passar os automóveis que estivessem para entrar! 

2005: permissão de transporte de passageiros, inclusão das pedelec

Esta situação nas rotundas era extremamente perigosa, claro e em 2005 foi rectificada, alargando-se às rotundas a excepção da cedência de passagem aos veículos automóveis.

Foi também em 2005 que o Código da Estrada passou permitir novamente o transporte de passageiros em velocípedes, recuperando a ideia da lotação limitada ao número de pares de pedais a accionar o veículo. A par disto, passou a permitir o transporte de crianças em dispositivos próprios, desde que usassem capacete.

Foi o ano também em que se passou a prever as pedelec, chamando-as “velocípedes com motor” e equiparando-as aos outros velocípedes. Na mesma altura obrigou os seus condutores e passageiros ao uso de capacete.

2012: alargamento do transporte de passageiros, clarificação da dispensa de licença de condução

Em 2012 introduziu-se a permissão de transporte de até 2 passageiros adultos (sem pedalarem) em velocípedes construídos para tal. Tornou-se explícita também a dispensa de licença de condução para velocípedes e afins.

2013: grandes conquistas

Em 2013 mudou muita coisa. Não ficou perfeito mas ficou significativamente melhor para os ciclistas.

Os ciclistas passaram a ser considerados utilizadores vulneráveis.

As bicicletas passaram a poder circular nas bermas das faixas de rodagem. As crianças até aos 10 anos podem agora (mas não são obrigadas a) andar nos passeios e passadeiras, sendo equiparadas a peões ao fazê-lo. As bicicletas já podem circular duas lado-a-lado dentro de uma mesma via, com restrições. Os ciclistas continuam a poder fazer as rotundas por dentro ou por fora. As ciclovias já não são obrigatórias, apenas preferenciais. Triciclos e atrelados com até 1 m de largura já podem circular nas ciclovias. Pode ser permitida a circulação de bicicletas nos corredores BUS.

Agora só podem ser transportadas crianças até 6 anos, inclusivé, em cadeiras homologadas (e apenas 1) e em atrelados. Já podem ser transportados passageiros em atrelados. As crianças já não são obrigadas a usar capacete, nem a conduzir nem transportadas na bicicleta. 

Os condutores de veículos a motor têm que abrandar na proximidade de ciclistas e de passadeiras de ciclistas. Os condutores de veículos a motor agora têm que deixar sempre pelo menos 1.50 m de espaço entre estes e uma bicicleta a circular na mesma estrada (no mesmo sentido ou em sentido contrário, na via ou numa ciclovia marcada no pavimento. Na ultrapassagem pela esquerda, os condutores (incluindo os ciclistas) têm agora que ocupar a via de trânsito adjacente, abrandar especialmente a velocidade, e manter pelo menos 1.50 m de distância lateral de segurança da bicicleta ultrapassada. (Na ultrapassagem pela direita, os condutores, incluindo os ciclistas), têm que abrandar a velocidade, e manter pelo menos 1.50 m de distância lateral de segurança da bicicleta ultrapassada).

Num cruzamento não sinalizado, o veículo que se apresenta pela direita tem prioridade, mesmo que seja uma bicicleta. Os ciclistas agora têm prioridade sobre todos os veículos ao atravessar em passagens para velocípedes (“passadeiras” para bicicletas), quando não haja sinalização vertical a indicar-lhes o contrário.

Para o futuro, há que fazer lobby!

Há coisas para melhorar no Código da Estrada. Por exemplo:

Deve ser deixado claro que os condutores de velocípedes podem dispôr de toda a largura da sua via de trânsito para circularem, de acordo com as necessidades que avaliem a cada momento. 

Deve ser tornada clara a permissão de transporte de 2 crianças em cadeirinhas em bicicletas normais, ou 4 ou mais crianças em cadeirinhas e afins em velocípedes construídas para tal.

Deve ser revogada a obrigatoriedade do uso de capacete pelo condutor e passageiros de velocípedes a motor.

Deve ser liberta das actuais restrições a permissão de circular a par.

Deve ser devidamente legislada a filtragem de trânsito parado / congestionado.

Deve ser criada uma excepção para os velocípedes na proibição do uso de 2 auriculares em dispositivos áudio ou radiofónicos, pois não há razão de segurança para a manter. Não faz sentido proibir isto quando não se proíbe a circulação na door zone, por exemplo.

As pistas para velocípedes devem passar de uso preferencial para reservadas, como os corredores BUS.

Devem ser previstas e regulamentadas as S-pedelec, pois são um importante recurso de mobilidade sustentável para um país com o nosso nível de desordenamento do território.

A permissão de circulação em corredores BUS deve ser tornada o default, podendo as autarquias restringir esse direito em corredores em que se justifique.

Deve ser proibida a circulação a menos de 1.00 m ou mesmo 1.50 m de carros estacionados no mesmo sentido de trânsito.

Deve ser regulamentada a circulação de pelotões / comboios de velocípedes, explicitando o número máximo de elementos por bloco e a distância entre blocos, sempre que hajam apenas 2 vias de trânsito na faixa de rodagem em questão.

Por Ana Pereira

Instrutora de condução, formadora em segurança rodoviária, e consultora em mobilidade & transporte em bicicleta. Bicycle Mayor of Lisbon 2019-2020.

6 comentários a “História do Código da Estrada e as bicicletas”

Obrigado pelo resumo histórico, muito interessante!
Uma sugestão para um próximo post:
Um gráfico que apresente a evolução temporal da velocidade máxima na cidade, a mortalidade por “acidentes” rodoviários e a quantidade de automóveis em Portugal.

Ana, o three é um trol bem conhecido da MUBi!
Muitos parabéns pela súmula histórica! Os carros são autênticas “bestas” no meio da cidade! Morrem por ano 1,3 milhões de pessoas de sinistros rodoviários! O tio Sam/Arábia Saudita bebem do seu sangue!

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