A malta queixava-se de que o nosso ateliê estava muito incognito, pelo que resolvemos atenuar ligeiramente a coisa afixando um placard por cima dos azulejos onde figurava ainda o nome dos últimos inquilinos do sítio. 😛 Pelo que para já a Cenas a Pedal está sinalizada assim:
Quando estamos no ateliê e ninguém estacionou o carro ilegalmente a barrar a passagem frente ao portão, a bakfiets está lá (normalmente deixando espaço ao lado para entrarem e saírem de bicicleta) a dizer “presente, aqui!” por nós.
Somos uns sentimentalões, nós. 🙂 E adeptos dos 3R’s. 😉 Este placard é especial, fazia parte do nosso stand na primeiríssima feira/evento em que expusémos/participámos, nos idos de 2007, o I Salão de Evasão & 4×4 de Oeiras.
No final da feira, pedimos para ficar com o placard, e guardámo-lo até hoje. 🙂 É engraçado lembrarmo-nos dos primeiros tempos, em que tudo era novo para nós. Continuamos a desbravar caminho, e a partir muita pedra, não é fácil aprender a fazer uma empresa sozinhos, ainda mais sem ter formação académica na área (um vem da informática e outro da biotecnologia), e sem nunca ter feito a mesma coisa numa empresa de terceiros (como é mais normal entre os empreendedores empresariais), e entrar numa área nova, até criar uma área nova. Mas para compensar a angústia de não saber como as coisas funcionam e “como se fazem as coisas“, tivémos a oportunidade de fazer as coisas à nossa maneira, como achámos que fazia sentido, sem estarmos formatados nem condicionados pela forma como os outros faziam as coisas (até porque não havia ninguém a fazer exactamente o que nós queríamos fazer!). Depois lá fomos aprendendo através da observação dos outros e da experiência própria, e afinando a nossa maneira de fazer as coisas. A aprendizagem e a afinação é, de resto, permanente. Mas aquela nossa ingenuidade inicial foi o que permitiu à Cenas a Pedal ser a Cenas a Pedal, única, original, autêntica.
O caminho faz-se caminhando. Os amanhã fazem-se hoje. Trata os outros como gostarias que te tratassem a ti. São estes os principais lemas que nos orientam no nosso caminho.
Nós, entre os dois, fazemos tudo na CaP, e muitas vezes as pessoas não têm noção que estão a lidar directamente com os donos da mesma. Recentemente, num serviço de aluguer sub-contratado, uma monitora do cliente comentou “que sorte” ao saber que o Bruno, a trabalhar como monitor nesse serviço e um tipo novo, era o dono da empresa. Aqui estão duas ideias pré-concebidas, mas erradas, muito comuns: 1) que as coisas acontecem por sorte, e 2) que ter uma empresa implica ter uma boa vida.
(A não ser que seja herdada) termos uma empresa própria onde desenvolver o trabalho que queremos nos termos que queremos, não é fruto da sorte (embora esta jogue o seu papel), mas de muito, muito trabalho, e muito sacrifício pessoal. Ter uma empresa não significa ser patrão (nós não temos empregados), e ter uma empresa (e mesmo ser patrão) não significa ganhar bem nem trabalhar pouco como a malta sonha. Para a generalidade das micro-empresas (com até 9 trabalhadores), e mais ainda para as “nano-empresas” como nós (2 pessoas!), principalmente nos primeiros anos de vida, significa precisamente o contrário, ganhar pouco, às vezes nada, e trabalhar muito. A recompensa não é financeira, é a de ter a oportunidade de criar algo, de mudar o mundo, de fazer diferente, de deixar um legado. E também de poder dispôr do seu tempo, quando dá…, e de seguir a sua própria ética, e quem sabe um dia conseguir ter algum património construído para um “rainy day” (o equivalente às poupanças dos trabalhadores por conta de outrém). O dinheiro só tem que dar para pagar as contas (um grande feito, normalmente!), e com sorte sobrar algum para reinvestir na empresa, para a manter sempre actualizada e em evolução positiva (parar é morrer!).
Outra ideia pré-concebida comum e totalmente errada é confundir empresas com lucro e entidades sem-fins lucrativos com ausência de lucro. E, claro, assumir os primeiros como uns sacanas gananciosos que só fazem o que der dinheiro, tudo o que der dinheiro, e porque dá dinheiro, e os segundos uns anjinhos altruístas e abnegados que trabalham de graça por uma causa maior. Isto enerva-me solenemente, porque é uma caricatura.
Era bom que ter uma empresa implicasse ter automaticamente lucro, mas isso é raro (a não ser que não paguem impostos, a SS dos empregados, os fornecedores, etc…). E era mau que as entidades sem fins-lucrativos nunca tivessem lucro, não poderiam crescer e expandir a sua [boa] acção. As únicas diferenças fundamentais entre uma empresa e uma associação sem fins lucrativos, é que para a primeira bastam 2 sócios (ou até 1) e para a segunda são precisos uns 9, e que quando há lucro*, se for uma empresa este pode sair da mesma e ir enriquecer os sócios, e se for uma associação sem fins-lucrativos isto não pode acontecer, o lucro fica na associação e é reinvestido (mas isto é, de resto, o mais normal numa pequena empresa também).
* lucro é o que sobra depois de pagos: o IVA, o PEC, os ordenados, os subsídios de alimentação, os fornecedores, a Segurança Social, os seguros, a renda, a água, a luz, a internet, o telefone, os empréstimos bancários, os consumíveis (papel, toners, detergentes, etc), as amortizações (coisas que se avariam ou degradam e precisam de substituição ou reparação, etc), as licenças (ex.: de publicidade, de ocupação de espaço público, de música, etc), os gastos com publicidade, os serviços (contabilista, informático, designer, limpeza, etc), o pagamento dos domínios e do alojamento de sites, etc, etc… Depois vem o Estado e sobre estas sobras leva-nos entre 12.5 % a 25 % em IRC. Se isto não der um resultado negativo, estamos bem!
Quando criámos a Cenas a Pedal, em 2006, a ideia era constituí-la na forma de uma Community Interest Company, algo que existia no Reino Unido desde 2005, mas não em Portugal (pelo que investigámos e pelo que nos foi dado a escolher), pelo que a única opção para um projecto criado e controlado a dois foi uma sociedade comercial convencional. Na prática, contudo, somos efectivamente uma empresa social.
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A mudança social para a qual trabalhamos tem a ver com a forma como as pessoas se deslocam e tudo o que está a isso associado, a jusante e a montante. Actualmente a mobilidade individual está fortemente dependente e até adicta do automóvel particular, criando problemas relacionados com:
- a saúde: doenças derivadas da poluição atmosférica e sonora, e do sedentarismo, mortes e sequelas derivadas da reduzida competência, responsabilização e fiscalização dos condutores de automóveis,
- as relações sociais entre as pessoas: a insegurança e a ocupação do espaço público pelos automóveis conduz ao isolamento, e à perda de relações de proximidade na comunidade, essenciais para haver redes de solidariedade e cooperação, e uma democracia funcional,
- a equidade e prosperidade económicas: os congestionamentos encarecem as actividades económicas, e roubam tempo às pessoas que poderia ser usufruído em actividades com a família ou amigos, gasto em si próprias, ou doado à comunidade na forma de voluntariado ou participação cívica; e as perdas de vidas humanas e os encargos de saúde derivados da poluição, do sedentarismo e dos acidentes constituem perdas económicas e gastos financeiros pelo Estado e pelos cidadãos; o gasto com o posse e uso dos automóveis constitui um encargo excessivo no orçamento das famílias, promovendo o seu sobreendividamento e/ou o não investimento noutros bens e serviços como formação, lazer, saúde, etc, e concentrando o benefício económico numas poucas grandes empresas relacionadas com a indústria automóvel,
- a preservação do ambiente: a poluição e os gastos de energia e água causados pelo fabrico, uso e abate dos automóveis constitui uma externalidade do uso do automóvel, que é suportada por todos, mas desproporcionalmente pelos mais pobres, justamente aqueles com menor acesso ao automóvel; o acesso e uso facilitado do automóvel privado permite e incentiva usos do solo ineficientes do ponto de vista energético, de mobilidade, social e ambiental, ao encorajar a dispersão, a baixa densidade, e o monofuncionalismo – levando à destruição de território natural e arável para construir estradas e parques de estacionamento, e edifícios, à maior dependência de fontes energéticas não renováveis e sujas, perigosas e/ou destruidoras de habitat (petróleo, carvão, gás natural, nuclear, hídrica), e à competição entre espaço para circulação e estacionamento de automóveis e espaço para arborização e ajardinamento de ruas, parques infantis, parques e jardins urbanos, parques desportivos, passeios e vias para bicicletas, estacionamento de bicicletas, largos, praças, bancos, etc, etc, etc.
Saúde, economia, ambiente, cidadania, solidariedade social, está tudo inter-relacionado e em tudo isto a bicicleta pode desempenhar um papel importante. Mas não tenhamos ilusões, a nível de uso para transporte, a bicicleta só é uma solução, uma coisa positiva, se vier substituir o carro.
A bicicleta, mais ciclistas, mais bicicletas na rua não é um fim em si mesmo, é uma forma de conseguirmos a cidade que queremos: saudável, acessível, competitiva e próspera, segura, diversa, democrática, participada, viva, agradável. E essa cidade sofre actualmente com o excesso de automóveis privados. Conseguir mais viagens de bicicleta à custa de viagens a pé e de transportes públicos é fácil e inútil, contraproducente até (vai criar problemas antes inexistentes, a nível de estacionamento, por exemplo). Não se pretende “acabar com os carros”, nem diabolizá-los ou a quem os usa, pretende-se, sim, criar soluções para as pessoas se deslocarem de forma mais sustentável, e mais eficiente, deixando o recurso ao automóvel (quer a posse e depois o uso) como solução de excepção depois do andar a pé, de bicicleta, de TP, em carsharing e em carpooling.
A missão da Cenas a Pedal é, assim, promover e servir um estilo de vida baseado na bicicleta como veículo utilitário, e do dia-a-dia, mas não só, pois passear, viajar e brincar de bicicleta é bom para o corpo e para a mente (além de ser bom para estimular as economias locais sem causar impactos ambientais e sociais negativos). 🙂 (Não se trata de defender a bicicleta pela bicicleta, nem a bicicleta em exclusividade – há que tirar partido da polimodalidade!)
Um dia esperamos poder estar e ser na Cenas a Pedal só pelo gozo de andar de bicicleta, triciclo & Cia e partilhar esse gozo com os outros, sem a luta de afirmar e instituir a bicicleta como opção de transporte digna, válida e competitiva (além de cool e sexy, yeah!). O amanhã por que trabalhamos hoje, virá um dia, é preciso é que continuemos todos a trabalhar para isso, pois não vale a pena esperar que as coisas aconteçam, alguém tem que as fazer acontecer, e isso somos todos nós com as pequenas e grandes acções de todos os dias, à nossa escala.